O Palácio dos Arcos
tem estórias de valor
que não quero aqui contar
Vou contar a estória do soldado carajá.
Era uma vez em Goiás
um soldado, carajá civilizado.
Sabia ler e contar.
Estimado no quartel.
Tinha boa disciplina,
divisas de furriel.
Um dia... era no mês de outubro.
A cidade estava baça
de fumaça das queimadas.
Fazia um calor medonho.
O povo clamava chuva.
O soldado carajá
dava guarda no palácio
aquele dia.
De repente, ouviu um trovão surdo rolar
do lado da Santa Bárbara.
Rolou outro atrás do primeiro.
Levantou-se um pé-de-vento,
redemoinho.
Um cheiro forte de terra.
Um cheiro agreste de mato.
Um cheiro de aguada distante.
O soldado carajá,
ninguém sabe o que sentiu.
Acordou dentro de si
uma dura rebeldia.
Uma rude nostalgia.
O grito de sua raça.
Chamados de sua taba.
Aquela mudança de tempo
despertou os seus heredos.
Acordou seus atavismos.
Certo foi...
O bugrinho carajá,
de uma tribo muito mansa do Araguaia,
tinha vindo pequenino para Goiás.
Foi criado bem criado
numa casa de família.
Ninguém nunca contou
dondé que ele tinha vindo.
Era mesmo filho da família,
era igual aos meninos da cidade.
Andou na escola. Aprendeu leitura.
Subiu nos morros, apanhou pequi.
Nadou no rio, fisgou cascudo.
Pinchou pedra, quebrou vidraça.
Vendeu tabuleiro de bolo de arroz.
Jogou bete na rua.
Empinou arraia.
Lançou corsário.
Brigou na regra. Embolou no aloite.
Escreveu indecência nas paredes.
Cresceu. Se fez homem de bem.
Sentou praça na Polícia.
Vestiu fardão escuro, botão dourado,
daquele tempo.
Calçou bota reiúna-canguru legítima,
ringideira.
Botou correame, quepe, mochila,
cinturão, refle-baioneta.
Encostou fuzil no ombro.
Fazia sentinela. Dava ronda.
Rendia guarda, marchava, desfilava.
Era estimado no quartel.
Tinha boa disciplina,
divisas de furriel.
Um dia (era no mês de outubro)
andavam de noite fogaréus vermelhos
queimando os morros.
A cidade estava baça de fumaça
das queimadas.
Fazia um calor medonho.
O povo clamava chuva.
O soldado carajá dava guarda no palácio.
De repente, ouviu um trovão surdo rolar
do lado da Santa Bárbara.
Rolou outro atrás do primeiro.
Levantou-se um pé-de-vento,
redemoinho.
Um cheiro forte de terra.
Um cheiro agreste de mato.
Um cheiro de aguada distante.
O soldado carajá, sabe lá o que sentiu.
Acordou dentro de si
uma grande nostalgia.
Uma dura rebeldia.
O grito de sua raça.
Chamados de sua taba.
Aquela mudança de tempo
despertou os seus heredos.
Acordou seus atavismos.
Certo foi que o soldado carajá
(bugre civilizado, sabendo ler e contar)
Encostou sua comblém (era no tempo das combléns).
Descalçou a reiúna-canguru legítima, ringideira.
Baixou o quepe, correame,
mochila, refle-baioneta.
Sacou da túnica.
Desceu as calças e o mais que havia,
Saiu correndo pelas ruas.
Nu?
Vestido com seus atavismos.
Coberto com seus heredos.
Alcançou a Barreira do Norte
e sumiu-se no rumo do Araguaia...
Na poeira do bárbaro
atuado pelas forças cósmicas e ancestrais,
ouvia-se o grito selvagem:
...uirerê! ...uirerê! ...uirerê!...
E era uma vez em Goiás
um soldado de guarda,
civilizado carajá!
(Cora Coralina)